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Pescadores convocam ‘Arca de Noé’ por WhatsApp para salvar peixes de dilúvio de lama

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Cerca de 400 famílias de trabalhadores sofrem isoladas às margens do rio Doce, entre Minas Gerais e o Espírito Santo, graças à enxurrada de lama que escoa das duas barragens rompidas em Mariana (MG) na quinta-feira, 5 de novembro.

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O empenho destes pescadores em salvar sua única fonte de sustento é tamanho que eles decidiram convocar mutirões para tentar transferir os peixes do rio contaminado para lagoas de água limpa. Batizada como “Operação Arca de Noé”, a força-tarefa voluntária operará em locais que ainda não foram atingidos pelo “tsunami de lama” que desce o rio Doce desde o dia 5.

Dourados, surubins, pacus, tucunarés, pintados e outras espécies afetadas pelos resíduos de mineração da Samarco, empresa controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP, estão escapando da morte dentro de caixas d’água, caçambas e lonas plásticas; tudo “no improviso”, segundo moradores.

Analistas ouvidos pela reportagem da BBC Brasil estimam que a passagem da lama e produtos químicos tenha reduzido o oxigênio do rio Doce a níveis próximos a zero, levando milhares de peixes e outros animais aquáticos à morte por asfixia.

Questionada sobre a situação dos pescadores, a Samarco disse, em nota, que “adotará as ações necessárias para identificação e mitigação dos impactos e reportará aos órgãos ambientais competentes”.

Analistas estimam que a passagem da lama e produtos químicos tenha reduzido o oxigênio do rio Doce a níveis próximos a zero, levando milhares de peixes à morte por asfixia.

A mineradora diz ainda que vai “priorizar a assistência à população afetada pelo acidente” e que “está executando um sistema emergencial de monitoramento da qualidade de água no Rio Doce”, com “pareceres técnicos imparciais, de equipe multidisciplinar renomada”. A empresa não informou, no entanto, quando o estudo estará pronto, nem quem faz parte desta equipe.

Após visitar cidades afetadas pelos rejeitos de mineração, nesta quinta-feira, a presidente Dilma Rousseff comentou pela primeira vez a situação no rio Doce.

“O nosso objetivo maior vai ser recuperar o rio Doce. O rio Doce é o sinônimo de vida da região”, afirmou Rousseff, que também anunciou multa de R$ 250 milhões à mineradora responsável pelos vazamentos.

Este valor é criticado pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que acompanha famílias afetadas por mineradoras desde 2013.

“A multa não chega à metade do valor doado por mineradoras para campanhas eleitorais no ano passado”, alega a secretária Katia Visentainer, com base em dados públicos relacionados às eleições de 2014.

Mortandade tem mobilizado pescadores na tentativa de transferir peixes do rio contaminado para lagoas de água limpa

RIO DOCE: ‘Matou tudo’

No fim da tarde desta quinta-feira, os pescadores da Operação Arca de Noé foram surpreendidos pela notícia de que receberiam reforços.

Uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Espírito Santo e pelo Ministério Público Federal ordenou que a mineradora resgate “a maior quantidade possível” de peixes nos municípios de Baixo Guandu, Colatina e Linhares, no Espírito Santo, antes da chegada da lama do rio Doce – o que deve acontecer nos próximos cinco dias.

Durante toda a semana, a BBC Brasil acessou fotos, vídeos e mensagens de áudio compartilhadas por pescadores em grupos no WhatsApp, ferramenta usada pelos ribeirinhos para denúncias e convocações.

As imagens mostram peixes cobertos de barro saltando em busca de oxigênio, grandes cardumes mortos boiando rio de lama abaixo e pilhas de animais em decomposição se acumulando nas margens.

Apesar destes indícios, a Samarco disse à reportagem que a lama é composta por “material inerte e não perigoso” e que “não apresenta riscos à saúde pública e ao meio ambiente”.

Imagens mostram peixes cobertos de barro saltando em busca de oxigênio, cardumes mortos rio de lama abaixo e animais em decomposição nas margens.

Mas um pescador não-identificado diz em uma gravação feita em Colatina, município que decretou estado de calamidade pública: “Quem puder (deve) ir para o rio para pegar a maior quantidade de peixes possível, de rede, de qualquer jeito, e soltar nas lagoas. A informação que tem é que vai morrer tudo”.

O administrador José Francisco Silva de Abreu, presidente da Apard (Associação dos Pescadores e Amigos do Rio Doce), vive em Governador Valadares (MG), onde a lama, nas palavras dele, “sim, matou tudo”.

“Eu apoio o mutirão para transferir os peixes. Fomos pegos de surpresa quando a lama chegou aqui, não deu nem para se preparar”, diz. “A gente via a agonia dos peixinhos até a morte. Digo com tranquilidade que hoje não resta um único ser vivo ali dentro.”

O professor de recursos hídricos Alexandre Sylvio Vieira da Costa, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, vem acompanhando a evolução da lama em Governador Valadares e atesta a impressão do pescador.

“Todas as plantas aquáticas que dão base ao ciclo biológico do rio morreram com a chegada esse rejeito, composto basicamente de ferro, alumínio e manganês. A água fica mais densa e o oxigênio não consegue se misturar”, explica. “Por isso não sobrou nada. Nem caramujo. Toda a vida aquática do rio Doce em Valadares morreu.”

Mineradora Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP, diz que lama “não apresenta riscos à saúde pública e ao meio ambiente”

O especialista diz que é preciso esperar a passagem da lama terminar para fazer estimativas sobre sua recuperação, mas poupa sinais de otimismo. “Eu não daria menos de dez anos para este rio começar a se estabelecer novamente.”

Costa lembra que ainda há “muita lama” acumulada na região de Mariana. “Se chover muito naquela cabeceira, mais material vai descer, mais material vai ser depositado e mais o rio vai morrer.”

RIO DOCE: Manual de sobrevivência

O volume despejado após o rompimento das barragens do Fundão e de Santarém, em Mariana, equivale a 25 mil piscinas olímpicas.

Após cidades como Colatina e Governador Valadares decretarem estado de calamidade pública, um “Manual de Sobrevivência na Crise” foi criado por movimentos sociais para auxiliar moradores a se adaptarem a restrição hídrica – em Valadares, por exemplo, 100% da água encanada vinha do rio Doce.

A cartilha traz orientações sobre armazenamento de água, reutilização e sugestões para economia de água em tarefas domésticas. “Entendemos que, sem abastecimento na rede, o material será bem útil para as pessoas lidarem com essa nova realidade de utilização da água”, diz Katia Visentainer, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que também disponibilizou o material para download .

Ag. Brasil – Rompimento de barragens destruiu vila de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), e deve arrastar destruição por 700 km até o oceano Atlântico

Para Abreu, da associação dos pescadores do rio Doce, a única maneira de recuperar o rio é proibir a atividade pesqueira pelos próximos cinco anos. “Só nos restam os afluentes, eles é que poderão recuperar, um dia, a saúde do rio”, diz.

A reportagem questiona: e o que acontece com as 400 famílias de pescadores que existem na região até lá?

“A nossa perspectiva é de que a pesca extrativista se exauriu”, diz Abreu. “A demanda é maior do que o rio pode oferecer e a cidade importa peixes para consumo. Então a melhor alternativa é capacitar os pescadores para que eles se tornem piscicultores e criem seus peixes em quantidade, em vez de depender do rio.

“Já estávamos desenvolvendo este projeto e a tragédia no rio Doce torna tudo ainda mais urgente.”

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