O presidente do Instituto Cigano do Brasil (ICB), Rogerio Ribeiro, denunciou que uma idosa de 82 anos e três adolescentes de etnias ciganas foram vítimas de tontura por polícias em Vitória da Conquista. O caso foi relatado durante uma entrevista para a Ponte Jornalismo.
À reportagem, o presidente do ICB disse que a entidade está monitorando as vítimas após relatarem os atos de tortura. Elas são parentes dos suspeitos de assinarem dois policias militares na zona rural de Vitória da Conquista no último dia 13.
“No dia do crime, o Arlan e o Dalvan (irmãos suspeitos de participação no duplo homicídio) bateram na porta dessa senhora, entregaram uma arma para ela guardar e ela assustada guardou a arma num pé de banana”, conta. “Vizinhos disseram que tinha essa movimentação na casa dela, os policiais chegaram lá por volta das 14h, entraram na casa e começaram a fazer perguntas e ameaça-las”, prossegue. “Um adolescente falou da arma e eles [policiais] começaram a bater e eles explicaram que não tinham nada a ver, foi recolhida essa arma e começou a sessão de tortura”, denuncia.
A Ponte pediu para entrevistar os quatro, mas Ribeiro diz que estão receosos e que foram levados a outra cidade. Ele disse que relataram a ele que a menina de 15 anos teve o cabelo parcialmente cortado com canivete, a agrediram com socos, a idosa apanhou na mão com palmatória e também teria recebido soco, os meninos foram golpeados com cassetete nas costas e nos pés e tentaram dar água sanitária para beberem. Após as agressões, os policiais teriam dado duas horas para a família sair da cidade. “Eles pegaram roupas, colocaram numa sacola, conseguiram arrumar um carro para levar para outro município e fizemos uma articulação para retirar eles de lá”, diz ele, que ficou quatro dias em Vitória da Conquista após a instituição receber denúncias de abusos por moradores de origem cigana.
A reportagem afirma que tanto o investigador que conversou com o site quanto a assessoria da Polícia Civil, disseram que a arma do tenente Luciano foi encontrada no dia 22 de julho, “após a PM receber denúncia de que a mesma estava em um terreno baldio, no distrito de José Gonçalves em Conquista”, sem mais detalhes sobre como foi encontrada.
A site também questionou a Defensoria Pública se havia tido conhecimento dessas denúncias e a assessoria do órgão negou, informando que está atuando apenas no caso das cinco mulheres e sete crianças para as quais havia conseguido abrigo provisório. “Pedimos entrevista com as defensoras que estão acompanhando a família, que se recusaram a falar com a reportagem”, disse a Ponte.
Diversas entidades ciganas, pesquisadores e ativistas haviam emitido uma nota conjunta no dia 15 de julho solicitando providências das autoridades e denunciam que “vários carros de famílias ciganas foram queimados e casas invadidas e queimadas também, sem autorização judicial” e que ao menos 15 pessoas teriam sido baleadas. “No Brasil não existe pena de morte. Uma comunidade inteira sofrer e morrer por atos cometidos que devem ser encaminhados para as instâncias jurídicas, evidência a violência, o despreparo e as injustiças cometidas pela polícia militar na Bahia. Assim, exigimos que todos os órgãos públicos e de direitos humanos interfiram imediatamente nessa situação, garantindo o direito à vida de todos os ciganos que moram em Vitória da Conquista e cidades do Estado da Bahia”, diz trecho do texto.
Sobre a queima de casas e carros, a PM disse à época que os incêndios foram provocados provavelmente pelos próprios ciganos após a fuga, com o intuito de destruir provas que pudessem facilitar suas identidades. Em relação às pessoas baleadas, como expresso pela nota do ICB, a polícia informou desconhecer a situação. Já sobre a denúncia de tortura, não houve esclarecimentos.
Entenda o caso
Até este sábado (8), oito ciganos da mesma família foram mortos após os assassinatos do soldado Robson Brito de Matos, 30, e do tenente Luciano Libarino Neves, 34, em 13 de julho,em Vitória da Conquista. Ambos eram lotados na 92ª CIPM Rural (Companhia Independente de Polícia Militar) e estavam atuando à paisana como P2, policiais que são credenciados no Comando de Operações de Inteligência da corporação e fazem investigações. Desde então, moradores de origem cigana têm denunciado ações abusivas da polícia na região.
Após o assassinato, a Polícia Civil qualificou pelo menos 11 integrantes da mesma família como suspeitos de participarem do crime. De acordo com um ofício da 92ª CIPM que a Ponte teve acesso, o tenente e o soldado estavam numa viatura descaracterizada no distrito de José Gonçalves para obter informações sobre um grupo de ciganos que teria recém-chegado à cidade e teria invadido um loteamento, construído barracos, e que membros dessa comunidade portavam armas e praticavam crime de receptação.
Segundo a Polícia Civil, a dupla foi até um estabelecimento comercial a procura de um homem, dono do local, para saber a localização do acampamento dos ciganos, mas ele não se encontrava. Em seguida, Robson fez uma chamada de áudio pelo WhatsApp para este homem solicitando a informação. A conversa foi ouvida pela sobrinha do proprietário e que, após a saída dos policiais, teria enviado uma mensagem de voz a Morais da Silva Matos, 13, avisando que dois homens em um carro branco estavam procurando o acampamento deles. Ela trabalhava em uma loja com a mãe de Morais e disse em depoimento já se relacionado com um dos irmãos dele, Lindomar, e que não sabia que a dupla era de policiais e que não viu armas com eles. O proprietário disse à polícia que forneceu o endereço e, quando retornou à sua loja, ficou sabendo do tiroteio.
O adolescente confirmou em depoimento à Polícia Civil, no dia 13 de julho, que recebeu esse áudio e que estava em um barraco com o pai Rodrigo da Silva Matos e os irmãos Diogo, Marlon, Bruno e Dalvan e mostrou a mensagem a ele. Morais disse que o pai e os irmãos Diogo, Bruno e Marlon saíram ao encontro dos dois homens. O menino ficou no acampamento e disse que ouviu alguns disparos de arma de fogo, tendo visto Rodrigo ferido no braço retornando para casa. No depoimento, não há informação se sabiam ou não que a dupla era de PMs.
Bruno, Dalvan e Diogo socorreram o pai em um veículo Gol branco, segundo Morais, que também disse saber que Diogo tinha um revólver e o pai é dono de um Cross Fox preto. Também declarou que os irmãos Arlan e Charles, que até o dia 13 de julho tinha 17 anos, estavam em um Fox.
A esposa de Rodrigo, com quem tem 12 filhos, e é mãe dos rapazes, disse que estava no mato fazendo necessidades fisiológicas, porque o acampamento não tem banheiro, quando ouviu barulho de tiros e viu o marido sangrando dentro do Gol. Uma de suas noras, esposa de Dalvan, pediu que o cunhado Charles, que estava em casa e não teria visto o que aconteceu, levasse Rodrigo para o Hospital de Base no Gol.
Morais foi baleado no dia seguinte, quando estava com a mãe em uma farmácia na cidade, na Avenida Crescêncio Silveira, no centro do município, não resistindo aos ferimentos dois dias depois. Nas imagens de câmera de segurança do estabelecimento, um atirador com a cabeça coberta por capacete e jaqueta preta aparece com uma arma em mãos faz os disparos. Ele estaria em uma moto junto com outro homem. O adolescente foi atingido na cabeça.
No dia 26 de julho, a Defensoria Pública da Bahia retirou cinco mulheres e sete crianças da família de Vitória da Conquista e pediu a inclusão delas no Provita (Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas), do governo federal, após receber denúncias de perseguição pela ouvidoria do órgão.
De acordo com a Polícia Civil, antes de Luciano e Robson chegarem ao acampamento, teriam sido emboscados por dois veículos, um Renault Sandero prata e um VW Gol branco, que fizeram disparos contra eles pelas costas. Uma testemunha disse à polícia que estava dentro de casa e, por volta das 11h30, viu três carros do lado de fora e um barulho de discussão, mas não conseguiu entender o que falavam, e que depois ouviu um estampido de arma de fogo e procurou se esconder. Os tiros, segundo ela, teriam durado cinco minutos. Depois, quando dois dos três veículos tinham deixado o local, soube por populares que as vítimas eram policiais e que “ouviu dizer” que os suspeitos eram ciganos.
Os policiais estavam com pistolas Taurus .40, além de quatro carregadores e 49 munições. Os dois morreram por traumatismo craniano. Segundo os laudos necroscópicos, Robson foi atingido por quatro tiros, sendo um na coxa direita e três na cabeça enquanto Luciano foi baleado com pelo menos 10 tiros, seis deles entre cabeça e pescoço, e também foi baleado no quadril, antebraço esquerdo, coxa esquerda e dedos da mão direita. Os peritos ainda teriam encontrado diversas cápsulas .40, calibre de uso restrito da PM, próximos aos corpos dos policiais, o que indicaria que os atiradores também usaram as armas dos policiais para atingi-los.
O veículo Sandero foi encontrado abandonado na Rodovia BR 116, pertenceria a Bruno e estava com o pneu esquerdo dianteiro estourado, por ter sido atingido por um disparo que teria sido efetuado por Luciano quando teria caído no chão. Segundo o documento, debaixo do banco do motorista foi encontrado um punhal que se encaixava com a bainha de couro que estava ao lado do corpo de Robson. A Polícia Militar encontrou o veículo antes da chegada da perícia e informou que recolheu dentro dele dois celulares que seriam de Luciano e Robson.
O Gol branco foi localizado próximo à rodoviária da cidade e foi levado pela Polícia Militar ao Disep (Distrito Integrado De Segurança Pública), o que impossibilitou realização de perícia. O veículo, de propriedade de Dalvan, foi usado para levar Rodrigo até a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do Hospital de Base e tinha marcas de tiro na lateral traseira e manchas de sangue no interior. Rodrigo tinha sido atingido no braço direito e é o único da família que está preso.
À polícia, ele disse que residia no local há seis meses e que havia adquirido 16 lotes no povoado para morar com a esposa, os filhos, noras e netos. Disse que estava cercando o terreno quando foi atingindo por tiro, desmaiou e não se lembra do que aconteceu e disse desconhecer os fatos quando foi confrontado com a versão de Morais e da esposa e noras. A Ponte tentou, durante três dias, falar com o advogado de Rodrigo, mas não houve resposta.
A Polícia Civil ainda informa que localizou um Santana prata nas imediações de uma pousada no bairro de Lagoa das Flores, no distrito de José Gonçalves. O carro teria sido roubado de um lava a jato por Solon e usado para transportar os irmãos quando o Sandero foi abandonado. Um funcionário do estabelecimento confirmou à polícia que ele foi ao local dizendo que o pai tinha sido baleado e pediu um veículo. Ao dizer que não tinha, Solon teria entrado no Santana e saído com o carro em alta velocidade.
De acordo com Rogerio Ribeiro, há pelo menos três etnias ciganas vivendo no Brasil: Calon, os Rom e os Sinti. A maioria das famílias que vivem em Vitória da Conquista são Calon. O dado mais recente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é de 2011, quando foram identificados 291 acampamentos reconhecidamente ciganos. A Bahia seria o segundo estado com o maior número: 53. Os documentos da investigação que a Ponte teve acesso não informam a etnia da família Silva Matos. Segundo Rogério, são da etnia Calon, a mais comum no município.