Por Rodrigo Juste Duarte e rede de pesquisadores do Observatório da Cultura do Brasil
As leis de incentivo à cultura no Brasil geram polêmicas há mais de uma década, em vista de contradições, em especial na Lei Rouanet, que até passou por CPI e operação da PF. Enquanto críticos culpam artistas famosos de forma leviana, os defensores não aceitam qualquer reflexão ou análise quanto à boa ou má aplicação. Outras políticas também enfrentam controvérsias. A Lei Aldir Blanc 2 passa por alterações sem consulta pública, em que um Projeto de Lei (4.172/2023) propõe subtração de 30% de seus 3 bilhões contingenciados para o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento.
Com verbas previstas, a Lei Paulo Gustavo (LPG) tem seus editais contestados em São Paulo por artistas e produtores culturais, que pedem revogação, alegando “arbitrariedades”. Na Bahia, o Fórum de entidades do audiovisual baiano contestou uma consulta pública da LPG e questionou a previsão de valores que serão distribuídos pela Lei. Como consequência, o MinC está orientando gestores estaduais e municipais para que executem editais menos burocráticos (problemas semelhantes aos relatados na Lei Aldir Blanc 1 entre 2020 e 2021).
É previsível que a Lei Aldir Blanc 2 enfrente as contradições por falhas de regulamentação que permitam que gestores locais promovam editais com poucos premiados, de forma concentrada e excludente, um panorama que também foi visto a partir de 2020 quando foi criada a Lei Aldir Blanc 1 (LAB1) para sanar o impacto da pandemia no setor. Pelo Brasil afora foram relatados casos de aplicação inadequada de seus recursos emergenciais e assistenciais, com denúncias (da sociedade civil e de representantes de classe) de que as verbas não chegaram à maior parte dos detentores de direitos (trabalhadores do entretenimento e cultura mais necessitados, incluindo artesãos e integrantes de povos de culturas tradicionais, como afrodescendentes, quilombolas, indígenas e ciganos, entre outros) devido à forma de distribuição por meio de editais burocráticos.
Também foram denunciados casos de racismo estrutural, servidores públicos premiados, concentração de prêmios de editais em determinados proponentes, entre outras irregularidades. Muitas delas foram confirmadas por auditorias realizadas pela Controladoria-Geral da União (relatório nº 1274864/2023) e pelo Tribunal de Contas do Paraná (em setembro de 2021).
Estudo preliminar fornecido pelo Observatório da Cultura do Brasil
Enquanto o segmento cultural ainda se recupera de uma crise sem precedentes, foi observado que durante a pandemia as políticas públicas assistenciais e emergenciais da LAB 1 dedicadas a apoiar os trabalhadores mantiveram um caráter excludente e elitista de editais de artes com seleção de mérito, como em anos anteriores.
Um estudo realizado pelo Observatório da Cultura do Brasil (OCB) em um comparativo entre editais de cultura entre 2015 e 2023 (incluindo recursos da LAB 1 entre 2020 e 2022) aponta que uma ínfima parte do setor (0,1%) recebeu até 20 prêmios, enquanto uma minoria (3%) recebeu apenas um auxílio da Lei Aldir Blanc e a maioria dos 400 mil trabalhadores do setor no estado (96,1%) simplesmente não recebeu recursos. A desproporção entre os beneficiados recorrentes, e a ampla maioria excluída destas vantagens com verbas públicas, até lembra um sucesso de Zeca Pagodinho em que questiona “Você sabe o que é caviar? Nunca vi nem comi, eu só ouço falar”, uma alegoria perfeita para a exclusão localizada.
A conclusão é de um levantamento inédito, realizado ao longo de um ano em uma auditoria independente cidadã em um estudo de caso do Paraná (segundo especialistas, os problemas apontados se repetem em várias partes do país).
Durante um período de 8 anos foi constatada uma concentração de prêmios e recursos em poucos nomes. A pesquisa aponta que 103 indivíduos acumulam até 20 prêmios (mais detalhes em https://tinyurl.com/mr2csp33). No período de aplicação da Lei Aldir Blanc 1, de 2020 a 2022, a tendência se repetiu. Em um levantamento da pesquisa, 481 pessoas acumularam de 4 a 8 prêmios da LAB 1, da amostra 12.127 foram contemplados com apenas um único recurso, enquanto 44.159 tentaram se inscrever em editais da LAB1 mas tiveram inscrições reprovadas, conforme demonstrou o OCB: https://tinyurl.com/fhm7yae5.
O levantamento também constatou que tanto no órgão de cultura estadual quanto no municipal, há tendência equivalente de assimetria (com valores baixos e dispersos para a maioria e prêmios avantajados e concentrados para alguns poucos), sejam nas aplicações de editais convencionais (fundo e mecenato), ou verbas emergenciais como a LAB1. Ao comparar apenas recursos da LAB1, houve maior desproporção de premiações entre os órgãos. A CGU afirmou em auditoria que os objetivos da lei Aldir Blanc não foram cumpridos no Paraná, destacando a falta de controle e certificação nos processos licitatórios, bem como as concentrações e repetições ocorridas. Ao se levar em consideração a bolsa qualificação (que distribuiu 12.013 prêmios de R$ 3 mil durante a pandemia) tem-se uma falsa impressão de dispersão ou de distribuição ampliada. Mas ao retirar os resultados deste edital das análises, a concentração mostra-se evidente.
Diante do total de 400 mil trabalhadores do setor criativo no estado, o levantamento aponta que os grandes acúmulos de recursos ficam concentrados em 0,1% do total de pessoas. No gráfico abaixo, é possível conferir a proporção de acúmulos de recursos:
A tendência de concentração e dispersão é melhor visualizada quando colocado lado a lado, quais CPFs e CNPJs acumularam determinados montantes de premiações. No topo a média chega aos 12 prêmios (sendo 20 o máximo) por concorrente, enquanto na base, apenas um recurso concedido em um período de 8 anos. Em valores monetários, a assimetria dispara, considerando que a maioria recebeu uma única premiação de R$ 3 mil, enquanto cada uma das premiações de quem está no topo do gráfico variam de R$ 10 mil a mais de 1 milhão de reais (na média são centenas de milhares de reais por proponente). É possível constatar uma tendência em que os mais privilegiados ganham editais com mais frequência (inclusive quando as verbas são emergências e assistenciais). Uma injustiça em andamento, que pode ser corrigida com vontade política na regulamentação da aplicação das leis de fomento e incentivo à cultura.
Os resultados obtidos foram fruto de trabalho de um ano de pesquisadores do OCB – Observatório da Cultura do Brasil (fundado em 2011 para promover estudos voltados a profissionais e pesquisadores culturais, e que deu início a um painel de dados da LAB), o levantamento cruzou 23.931 linhas de dados com resultados de 131 editais culturais de mecanismo como mecenato, fundo, prêmios da Lei Aldir Blanc 1 e contratações (e mais 61 editais de credenciamento de pareceristas), totalizando 192 editais dos órgãos públicos estadual (SEEC-PR – Secretaria Estadual de Cultura do Paraná) e municipal (FCC – Fundação Cultural de Curitiba) no recorte 2015 a 2023.
Além de sanar dúvidas históricas sobre a lisura e eficácia das políticas de editais, o cruzamento comprova o cenário de má aplicação, concentração e exclusão da Lei Aldir Blanc 1 no estado entre 2020 e 2022.
Este trabalho constatou o acúmulo ou reincidência frequente de prêmios ou recursos em artistas com mais projeção dentro de um circuito local, em detrimento de proponentes pouco premiados, além dos excluídos, que sequer entraram na estatística. A proposta foi de conferir, a partir de documentos públicos, a frequência com que os contemplados se repetem ou não durante o período para traçar análises sobre a eficácia (Inclusão, distribuição, amplitude, diversidade, objetivos) das políticas culturais. Um relatório preliminar está disponível de forma online.
O relatório com os resultados é preliminar, sendo uma amostragem quantitativa e qualitativa com dados auditáveis em fase de processamento. A pesquisa está em fase de fechamento e o relatório preliminar estará disponível no painel de dados da LAB (https://linktr.ee/PainelDeDadosDaLAB ).
O OCB informou que variáveis de dados podem ocorrer devido a falhas nas informações dos órgãos públicos, que não são completos devido a erros nas planilhas de editais, falta de transparência, e de desrespeito a Lei de Acesso a Informação, com respostas precárias ou recusas de entrega de informações sobre editais. Os dados são públicos, mas muitos foram obtidos por meio de pesquisas nos sites da FCC e SEEC-PR (incluindo links ocultos).
Apesar de prováveis variações nos números, que podem ocorrer para cima ou para baixo nas premiações individuais, ficam preservadas as tendências de concentração e dispersão.
O estudo sobre a aplicação da Lei Aldir Blanc gerou, ao longo de 2021 a 2023, mais de 30 reportagens e artigos acadêmicos sobre o tema, e resultará em breve em um livro, tendo também como autores o jurista Gehad Hajar, o cientista político Manoel J de Souza Neto, entre outros colaboradores do OCB. Em seus estudos, depoimentos e diálogos obtidos pela reportagem, os pesquisadores constataram que: existe ocorrência de grave concentração de recursos, má distribuição e falha no sistema de editais de cultura (ainda mais grave do que nos apontamentos das auditorias realizadas pelo TCE-PR e CGU), descumprimento dos objetivos das políticas culturais, ação de grupos de interesses que levaram vantagens, existência de vítimas da exclusão social e econômica no setor cultural ainda em recuperação devido a distribuição assimétrica, concentração e dispersão dos recursos públicos direcionados pelo falho sistema de editais.
Bem complicada a matéria e a pesquisa. Muita distorção de informação. Parece que não conhecem o mecanismo de edital para cultura ou usam de má fé para dizer o que querem. Confundem indivíduos com projetos, um desserviço para o setor. Quem recebe um prêmio de 200 mil emprega quantos trabalhadores? Como os trabalhadores não receberam? Eles estão nos projetos. Eles dizem como se o dinheiro fosse para a pessoa. Outra coisa, não é função de edital distribuir verba para profissionais. Os editais são para projetos culturais que empregam profissionais da cultura. O repasse de verba para trabalhador de cultura na pandemia foi uma exceção assistencial porque não havia como empregar pessoas. Isto não deve ser mantido em tempos normais. Queremos trabalhar e receber por nosso trabalho e não viver de ajuda. Quanto a questão da burocracia, é um tema muito delicado para lidar com dinheiro público. Alguém precisa se responsabilizar pela gestão do dinheiro e prestação de contas. Uma comissão precisa levar em conta a capacidade do proponente para gerir recurso público. Existem outras formas de financiamento da cultura mais apropriados para fazedores de cultura menos estruturados como compra de apresentações, exposições … Desta forma não é necessário a prestação de contas, apenas a entrega do serviço.