A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) concedeu na última quarta-feira (1) o título de Doutor Honoris Causa ao rapper e figura seminal do hip hop brasileiro, Pedro Paulo Soares Pereira, o Mano Brown. A honraria foi concedida em solenidade da sessão especial do Conselho Universitário, realizada no Teatro Municipal Candinha Dórea, em Itabuna.
Mano Brown, uma das vozes mais importantes das periferias, foi assim homenageada pela academia em face de sua contribuição artística e social ao falar da vivência da juventude negra com a força, a poesia e a astúcia das ruas à frente do grupo Racionais MC’s, desde 1988. O título honorífico significa, para a UFSB, uma parte relevante da celebração dos dez anos da lei de criação da universidade, em um movimento duplo de rever o caminho percorrido e propor novos pontos do trajeto.
A solenidade teve diversos sentidos. Em geral, eventos do tipo são regidos pela ritualidade ordenada e a seriedade do propósito se mostra pela aderência às normas protocolares e contenção das emoções na medida do possível. O carisma de Brown, o entusiasmo do público com a presença do homenageado, os significados da honraria para todos os presentes e a própria essência do rap se encarregaram de temperar a cerimônia com a alegria espontânea, a disposição para se insurgir e denunciar as injustiças, a rapidez precisa na rima, os risos nos rostos, palmas à mancheia. Em diversos momentos o público rompeu a expectativa de silêncio, a exemplo para festejar as falas e especialmente a chegada de Mano Brown ao teatro, a formação da mesa de honra e mesmo o pedido de uma “palhinha” feito da plateia ao homenageado da noite, posteriormente atendido com muita energia.
O Consuni aprovou a proposta da honraria a Mano Brown em 16 de agosto de 2023. A iniciativa foi da Pró-reitoria de Extensão e Cultura (Proex) e a titulação, proposição da Reitoria. O objetivo foi homenagear a liderança artística de Brown no cenário nacional do hip hop, além de celebrar a importância do gênero musical como forma de expressão da população negra periférica. A aprovação também integra as comemorações dos dez anos de criação da UFSB no Sul da Bahia, em uma programação estendida ao longo de 2023 com diversas atividades que conectam o histórico da construção institucional e perspectivas de futuras contribuições da universidade ao território. A concessão de títulos honoríficos é uma prática comum em universidades e é voltada a reconhecer as contribuições acadêmicas, humanísticas e sociais para a sociedade, para a pesquisa e em prol do desenvolvimento do país em suas mais diversas áreas, homenageando docentes, pesquisadores, técnicos, discentes, personalidades nacionais e estrangeiras e entidades nacionais.
Rito, ritmo, rima
O Teatro Candinha Dórea recebeu o público ao som de discotecagem com clássicos do repertório dos Racionais e do hip hop nacional. A solenidade foi precedida por apresentações culturais com rappers regionais: AfroPecado, do Campus Paulo Freire (slam poético); SolHanna, do Campus Sosígenes Costa (rap acústico); Jane Inácio, do Campus Paulo Freire (rap Travestigenere); e Geração Bantu, do Campus Jorge Amado (Rap Brasil Angola). No encerramento, a celebração ao movimento hip hop coube aos coletivos Conexão Rap Baiano, de Itabuna, e a Ocupação Hip Hop, do circuito Ilhéus/ Itacaré/ Uruçuca. Cada performance evocou e provocou sentidos sobre os problemas do território em que a universidade está e no qual atua, e também falou das condições humanas que existem no Sul da Bahia.
A sequência de discursos contemplou as falas do representante dos funcionários terceirizados da UFSB, Jorge Raimundo dos Santos; do representante discente no Consuni, Felipe Soares de Moraes; da coordenadora de Culturas Populares e Relações Comunitárias, e representante dos técnicos administrativos em Educação, Ize Duque Magno; e do decano do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências do Campus Sosígenes Costa, e relator da proposta da honraria no Consuni, professor Francisco de Assis Nascimento Júnior.
Jorge Raimundo dos Santos marcou sua fala pela emoção em estar à mesa com um artista que considera seu herói. Para ele, a obra dos Racionais MC’s foi importante para aprimorar sua visão de mundo. Ele concluiu sua manifestação desejando que mais pessoas com a coerência de Brown surjam e que se lembrem, quando progredirem na vida, de “descer a escadaria” e dialogar com as pessoas ainda na base.
O representante discente no Consuni, e recém-formado jornalista pela UFSB, Felipe Soares de Moraes, falou do momento histórico para a instituição e para o seu principal público de interesse. O papel do rap como forma de poesia engajada na denúncia e a liderança de Brown como contador de histórias das comunidades com as quais a sociedade e a academia não dialogam são pontos importantes para compreender o mérito da proposta de honraria. “Através da sua música, o Mano Brown mostra que a arte não é apenas um mero empreendimento, mas também uma ferramenta de formação política e transformação social. Ao dialogar com a juventude preta, pobre e periférica, Mano Brown dialoga com a juventude que nós queremos dentro da Universidade Federal do Sul da Bahia”, disse Felipe, reforçando que a concessão da honraria mostra para toda a comunidade jovem e periférica do Sul da Bahia que essa universidade lhes pertence.
O professor Francisco de Assis fez uma reflexão sobre as expectativas e a realidade escolar para, então, apontar o valor da cultura como ponto de diálogo com os jovens. Relator da proposta da honraria no Consuni, Francisco contou que redigiu várias vezes o parecer, sempre achando que poderia melhorá-lo, dada a importância que o assunto assumiu para si, enquanto docente da área de licenciatura, da preparação de novos professores. A proposta foi aceita unanimemente no Consuni, destacou ele, de modo que considerava que seu relatório não necessitava de defesa, no sentido acadêmico do termo. Isso se deveu ao reconhecimento da mensagem dos Racionais MC’s e de Brown como a que melhor dialoga com a juventude negra e periférica e a que faz o relato mais contundente da realidade que essa parte do Brasil vive. O título de Doutor Honoris Causa, assim, materializa e simboliza esse reconhecimento e marca o nome de Brown na história da UFSB, um momento histórico do qual disse estar honrado de participar.
A coordenadora de Culturas Populares e Relações Comunitárias da UFSB e representante dos servidores técnicos administrativos em Educação, Ize Duque Magno, em suas próprias palavras, usou o seu momento de fala ao microfone da forma que sabe melhor. Ize cantou sobre união, a solidariedade entre perseguidos, a cantiga e a mandinga que são as tradições cimentando a irmandade, a altivez e o talento perante a adversidade.
Em seguida, o diploma de Doutor Honoris Causa e o termo de outorga da honraria foram lidos e assinados à mesa da solenidade. Em seguida, o homenageado da noite, Pedro Paulo Soares Pereira, o Mano Brown, falou ao público sobre o significado da honraria a ele concedida. Ele agradeceu especialmente aos colegas dos Racionais MS’s pela irmandade firmada ao longo dos anos e pela fé nele depositada. Mencionando brevemente o começo como artista, Brown lembrou que houve uma época em que não tinha a certeza de seu talento, e que foi a amizade profunda com os colegas de grupo que o fez prosseguir e se aprimorar. Brown reafirmou ter orgulho de sua origem e de se dizer “afrobaiano”, ao lembrar da história de vida de sua mãe, que saiu da Bahia para São Paulo, e da sua criação passando por vários terreiros, do cotidiano que sempre foi difícil enquanto jovem da periferia, da solidariedade na humildade. Por isso ele também destacou a importância desse reconhecimento no estado de origem de Dona Ana Soares Pereira: “tinha de ser na Bahia, mesmo”.
Como rapper e pessoa de palavra sem curva, Mano Brown atendeu o pedido de uma música ao final de seu discurso, cantando “Vida Loka” ao lado da rapper AfroPecado. A mais vibrante das quebras de protocolo da noite fez o público se levantar mais uma vez e ocupar o espaço do teatro para dançar e cantar junto com o artista. Se àquela altura houvesse em alguém no Teatro Candinha Dórea algum resto de dúvida sobre o carisma de Brown e a força do rap, esses resquícios teriam sido bombardeados ao esquecimento.
A próxima a falar foi a reitora da UFSB, professora Joana Angélica Guimarães da Luz. Ao mencionar os sucessos da carreira dos Racionais MC’s, a reitora destacou o vigor poético na denúncia da violência, do racismo e da desigualdade social que a população negra sofre no Brasil. “Ao darmos a Mano Brown o título de Doutor Honoris Causa, estamos reconhecendo a importância que o seu trabalho, seu pensamento, sua produção artística tem na interlocução com a população jovem, em especial aquelas pessoas que nunca tiveram voz na nossa sociedade. Populações de jovens periféricos encontram em sua música uma forma de se expressar e de se sentirem representados na densidade da sua poesia”, declarou a reitora. Joana também apontou a dificuldade da universidade brasileira em acolher e em reconhecer e desenvolver os talentos presentes nas camadas periféricas da sociedade, e que essa solenidade foi uma mostra de que a academia não pode andar só, sendo vital que a universidade se abra para outras formas de linguagem e de conhecimento.
A sessão especial teve continuidade com a exibição do documentário Do Gueto à Tela, do documentarista Luaran Souza Simião, estudante da UFSB no Campus Sosígenes Costa. O documentário aborda o hip hop na comunidade do Complexo do Baianão, em Porto Seguro. O vídeo fala da organização dos jovens em prol da sua expressão artística e política, das escolhas que fizeram e fazem na caminhada do rap, forjando uma visão de mundo que combina a poesia e o cuidado dos seus afetos e do lugar onde nasceram e onde vivem.
A última apresentação cultural também coube a artistas locais do hip hop, com a Conexão Rap Baiano, de Itabuna, e a Ocupação Hip Hop, do circuito Ilhéus/ Itacaré/ Uruçuca. O selo Razzo Records, que produz e apoia a gama de rappers regionais, foi apresentado pelos artistas e deve lançar faixas novas em breve.