O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), vinculado à Secretaria de Cultura do Estado (Secult-BA), celebra neste mês o primeiro ano do registro do caruru de São Cosme e São Damião como patrimônio cultural imaterial da Bahia.
O reconhecimento, concedido em setembro de 2024, foi resultado de um processo de pesquisa e escuta junto a comunidades que mantêm viva a tradição, reforçando sua importância histórica, religiosa e social.
Preparado com ingredientes como quiabo, camarão seco, castanha, amendoim e azeite de dendê, o caruru é realizado anualmente, em setembro, em devoção aos santos gêmeos Cosme e Damião, associados aos Ibejis nas religiões de matriz africana.
O rito envolve rezas, cantos, a organização da mesa e a partilha coletiva da refeição. Um dos momentos mais simbólicos é a presença das crianças conhecidas como os “sete meninos”, que são servidas antes dos adultos, gesto que reforça a ligação do caruru com a infância.
Raízes culturais
A tradição do caruru nasceu do encontro de diferentes matrizes culturais. O nome vem do tupi caá-riru, que significa “erva de comer”, em referência ao uso inicial de folhas como bredo e taioba. Com a presença africana, sobretudo de povos oriundos do Golfo do Benim, a receita ganhou elementos como o quiabo e o azeite de dendê, associados à cosmologia iorubá.
Relatos do século XIX já registravam a prática em Salvador e no Recôncavo, muitas vezes acompanhada de festas coletivas com samba, rezas e distribuição de doces. Hoje, a tradição segue presente em famílias, terreiros e comunidades, alcançando até aldeias indígenas que incorporaram a celebração aos seus próprios rituais.
Reconhecimento e salvaguarda
Durante décadas, práticas ligadas às religiões afro-brasileiras, incluindo o caruru, enfrentaram perseguição e preconceito. Para especialistas, o registro como patrimônio imaterial representa também uma forma de reparação histórica e de proteção frente à intolerância religiosa.
“O reconhecimento representa a valorização de uma tradição secular profundamente enraizada em nossa identidade. Ao ser registrado como patrimônio, asseguramos não apenas a originalidade desse banquete, mas também a riqueza de seu diálogo com o sincretismo religioso, uma das marcas mais expressivas da cultura baiana”, afirmou o diretor-geral do IPAC, Marcelo Lemos.
O registro possibilita ainda a implementação de ações de salvaguarda, como documentação, apoio às comunidades guardiãs da tradição, projetos educativos e incentivo à transmissão do saber às novas gerações.
Um gesto de partilha
Autor do dossiê que embasou o reconhecimento, Tata Ricardo, líder do Terreiro Lembá, destaca o caráter reparatório da medida. “O caruru de Cosme e Damião como patrimônio imaterial do Estado é, antes de tudo, uma ação de cuidado e salvaguarda. É uma manifestação que expressa a fé de um povo e carrega um legado ancestral de resistência, afetividade e identidade”, afirma.
Para ele, sentar-se à mesa de um caruru é mais do que compartilhar comida: é partilhar memória coletiva, história e fé. “O caruru não apenas alimenta: ele guarda saberes, ancestralidade, resistência e afetividade. É uma manifestação que conecta gerações e reafirma o compromisso com a memória coletiva do nosso povo”, conclui.