20.6 C
Guanambi
17.4 C
Vitória da Conquista

Como a milícia ameaça as matas do Rio de Janeiro

Mais Lidas

Onde havia uma encosta coberta por densa mata atlântica, hoje há prédios que avançam morro acima; onde havia florestas e plantações, hoje há lagoas – não naturais, mas resultantes da escavação do terreno para extração de minerais.

Investigadores suspeitam que grupos de milicianos estejam por trás de alguns desses empreendimentos, que ameaçam há décadas as matas fluminenses.

Milícias, grupos armados formados por integrantes e ex-integrantes de forças de segurança do Estado, como policiais, bombeiros e agentes penitenciários, são conhecidas por controlar territórios e cobrar, com violência, taxas por serviços, como venda de água, gás, cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas.

  • ‘Às vezes some alguém’: a vida na ‘tranquila’ favela dos suspeitos da morte de Marielle
  • A busca de família por tio que morreu ‘duas vezes’ no desabamento no Rio

“Mas há uma diversificação grande da atuação desses grupos, que inclui atividades que geram uma série de crimes ambientais”, diz o procurador Júlio José Araújo Júnior, do Ministério Público Federal.

E não é de hoje, como conta o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que pesquisa a milícia da Baixada Fluminense. “Pelo menos desde os anos 1990 há relatos disso (tomando matas e ocupando-as para atividades lucrativas)”, diz o professor.

A BBC News Brasil leu documentos, ouviu autoridades, especialistas e ativistas para entender quais atividades danosas ao meio ambiente esses grupos praticam, quais são as consequências para a natureza e por que muitos seguem impunes.

A Secretaria de Segurança do Estado foi procurada, mas até a publicação deste texto, não havia respondido.

Desmatando para construir casas e prédios

Investigadores e pessoas que estudam grupos milicianos dizem que uma das atividades mais lucrativas da milícia está diretamente ligada ao desmatamento: a construção de empreendimentos imobiliários para venda, em alguns casos avançando sobre áreas de proteção ambiental. Há exemplos conhecidos em municípios da Baixada Fluminense e na zona oeste do Rio, ambos lugares onde esses grupos paramilitares exercem forte controle.

“É onde se vê mais lucro. Isso acontece porque há uma demanda enorme por moradia no Rio. Não existe uma política habitacional que dê conta disso. Para grande parte da população, pagar aluguel é um peso enorme. Comprando uma casa própria, ela pode ter outra perspectiva de vida, pensar em estudar. É um grande investimento. E por outro lado tem essa oferta sem freios dos grupos milicianos”, diz José.

O fato de milicianos serem, como membros das forças de segurança, parte do Estado, facilita a atuação. “Como atuam dentro da estrutura de governo, têm acesso às informações, sabem de quem é uma terra, se tem fiscalização e, se tem, sabem como evitar. Assim, conseguem mapear facilmente áreas sujeitas à atuação deles”, diz o pesquisador.

O bairro do Itanhangá, vizinho à Barra da Tijuca, é espremido entre uma encosta de densa mata atlântica e uma pequena lagoa. Sua fronteira se mistura com o Parque Nacional da Tijuca. Tem condomínios com casas caras, um clube de golfe e algumas das comunidades hoje controladas por milicianos, como Rio das Pedras, uma das maiores favelas da cidade, e a favela da Muzema.

Esta última cresceu rapidamente nos últimos anos, encosta acima, arrasando com o bioma e se aproximando dos limites do Parque – mais especificamente, a 50 metros de sua zona de amortecimento, como são chamadas as faixas de proteção de unidades de conservação.

Espécie de comunidade-satélite da vizinha Rio das Pedras, vem sendo ocupada desde a década de 1960, quando o boom imobiliário da Barra da Tijuca atraiu milhares de pessoas para trabalhar nas obras e alimentar a demanda por serviços do bairro de classe alta.

Mas seu crescimento tem sido ainda mais acelerado desde que milicianos passaram a controlá-la, dizem moradores, chamando a atenção do poder público.

É comum ouvir que Rio das Pedras é o berço das milícias do Rio. Ainda que não seja possível afirmar isso categoricamente, é consenso entre pesquisadores que esses grupos têm décadas de atuação no bairro.

Quando o sociólogo Ignacio Cano, que também pesquisou milícias no Rio, começou a fazer pesquisa em Rio das Pedras, na década de 1990, já havia um grupo que controlava o setor imobiliário do território, diz ele.

Em 2016, o MP abriu inquérito para apurar denúncias de invasão e desmatamento. Fotos que constam de ação civil pública resultante da investigação mostram que já estava avançada a construção do condomínio Figueiras do Itanhangá, onde dois prédios viriam a desabar pouco anos depois, no início de 2019, matando 24 pessoas. Moradores dizem que os empreendimentos pertencem e são controlados por milicianos. Investigações dão conta de que de fato imóveis foram financiados por um desses grupos paramilitares.

A ação civil do MP indica que pelo menos desde 2005 autoridades municipais sabiam que estavam sendo feitas obras para implantação de loteamento clandestino, em terreno de encosta, com entrada e guarita de segurança.

“O terreno é em aclive, em especial, em sua porção posterior, onde, junto ao limite da área ocupada, existe encosta com declividade superior a 45 graus, podendo ser classificada como Área de Preservação Permanente”, diz trecho da ação.

As consequências ambientais da construção do empreendimento também são descritas na ação e foram elaboradas pelo Grupo de Apoio Técnico Especializado do MP: erosão, assoreamento de cursos de água, desestabilização da encosta, afugentamento de animais, perda de biodiversidade e material genético, degradação do ecossistema que sobra, impermeabilização do solo e aumento do escoamento de água de chuva, alteração do microclima local, potencial poluição hídrica em decorrência da ausência de sistema de esgotamento sanitário e sobrecarga na rede existente, alteração da paisagem, adensamento populacional sobrecarregando a infraestrutura existente.

O procurador Júlio José Araújo Júnior, do Ministério Público Federal, que atua na Baixada Fluminense, diz que uma das principais dificuldades de atuar contra esse tipo de crime é que existem vias que dão chancela legal a esses empreendimentos. “O desmatamento ocorre, um loteamento é feito, pede-se a regularização fundiária. É assim que funciona qualquer ocupação. Existe uma população que está morando ali e instala-se um dilema – ou você tira eles dali ou regulariza a terra”, diz o procurador.

Areais

Outra frente de atuação de grupos paramilitares danosa ao meio ambiente é a extração de areia do solo. O produto de areais depois alimenta a construção civil.

“A areia vai sendo extraída e lagoas vão se formando naquelas áreas, inviabilizando a terra e avançando sobre áreas protegidas”, diz o promotor Araújo.

A prática de extrair areia e outros minerais é antiga na Baixada e pode ser legal, se feita com autorização das autoridades, cumprindo limites e compensando danos ambientais, diz o ecologista Sérgio Ricardo, fundador da organização Baía Viva, que atua em proteção da Baía de Guanabara. A demanda aumentou exponencialmente nos últimos anos, puxada pela execução de obras para grandes eventos.

As consequências para o meio ambiente são diversas, explica o ecologista: desmatamento, destruição da faixa de terra à borda dos rios, assoreamento, contaminação do lençol freático.

Investigações policiais e do Ministério Público dão conta de que grupos milicianos controlam alguns dos areais ilegais.

As autoridades suspeitam que, em alguns casos, os grupos usam a atividade como forma de lavar dinheiro.

Em julho deste ano, uma operação policial prendeu um ex-PM, suspeito de participar de uma quadrilha que lavava dinheiro para milicianos dessa maneira.

Segundo a polícia, o ex-PM era sócio de uma empresa de areia, saibro e terraplanagem que atuava em Seropédica. A milícia depositava dinheiro ilícito nela de modo a retorná-lo ao mercado de forma lícita.

“A fachada é limpa, mas os recursos são oriundos de crimes como extorsão, homicídios, transporte irregular”, disse, em coletiva de imprensa após a operação, a promotora Alessandre Celente.

Em alguns casos, os areais estão dentro de Áreas de Proteção Ambiental (APA), como no caso da Área de Proteção Ambiental do Alto Iguaçu e fica no entorno da Reserva Biológica do Tinguá.

A APA foi criada em 2013 justamente para evitar ocupação desordenada.

Há ali pelo menos três grandes areais. As investigações não esclareceram ainda se há atuação de milicianos, mas moradores da região dizem que há envolvimento de homens que se identificam como policiais.

A Baixada Fluminense sempre foi um lugar de agricultura e atividade rural. Mesmo hoje, quando sua área é ocupada por grandes cidades e favelas, ainda há áreas plantadas. Por isso, há a presença de alguns assentamentos, como o Terra Prometida, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o que acentua ainda mais a complexidade da situação. O assentamento está regularizado, tem reconhecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e os assentados têm títulos dos terrenos. Mas o terreno é cercado por areais ilegais.

Em março deste ano, o grupo do MST, formado por cerca de 60 famílias, denunciou que um dos lotes em que fazem suas plantações, que faz fronteira com um areal, fora invadido. Segundo o grupo, homens armados e identificados como policiais ameaçaram os trabalhadores rurais.

Em abril, a Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) fizeram uma operação que fechou e apreendeu quatro máquinas e oito caminhões que eram usados na extração ilegal de areia.

Segundo o procurador Araújo, do Ministério Público Federal, há denúncias de que, desde então, a extração de área ali mudou, mas não acabou. “Há relatos de que eles agora atuam mais discretamente, à noite”, diz.

A repressão a essas atividades, opina o procurador, enfrenta uma série de obstáculos. Quando ela acontece, diz ele, tem efeito de curto prazo. “Se fiscais fazem uma operação num empreendimento, será detido quem estiver lá naquele dia, mas no dia seguinte já tem outra pessoa”.

Ele diz que esse caso é típico. “As respostas a problemas como esse são sempre sabidamente insuficientes. Fazem ações que chamam a atenção, prendem pessoas, mas ninguém que seja importante (na quadrilha). A atividade continua.”

O procurador também critica o que descreve como “a incapacidade dos órgãos de se articularem para criar estratégias (de enfrentamento) e a dificuldade de pensar além das atribuições ordinárias para tentar fazer frente. Ainda que não seja possível garantir a responsabilidade de quem comanda (essas atividades), pelo menos podemos cessá-las, o que é emblemático e pedagógico”, diz ele.

Ele aposta que uma forma de combate mais efetiva seria a apreensão dos equipamentos de grande porte usados para a extração de minerais, como ocorre, por exemplo, em algumas operações de repressão a desmatamento na Amazônia.

No caso deste areal específico, Inea e MPF estão trabalhando para que isso venha a acontecer. Em reunião feita na última quinta-feira, 19 de setembro, ficou acordado que o Inea disponibilizará recursos para que o Exército faça a remoção de equipamentos como silos, por exemplo.

Furto de combustível

Numa noite de abril deste ano, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, uma quadrilha tentou perfurar o duto Orbel I da Transpetro. O furto não deu certo; houve rompimento da mangueira presa à válvula, que não suportou a alta pressão do duto. O resultado foi um vazamento de aproximadamente 237 mil litros de gasolina. Uma criança acabou morrendo por queimaduras químicas. Alguns animais e partes da vegetação também foram afetados.

O crime de furto de combustível tem se tornado mais comum, não só no Rio, mas em outros Estados e países. No Rio, ele ocorre na Baixada Fluminense, por onde passam os dutos que transportam petróleo e combustível e onde a milícia exerce forte controle. O papel desses grupos ainda não é claro, mas pessoas envolvidas nas investigações suspeitam, por exemplo, que eles cobrem por proteção e “pedágios”.

O crime não apenas gera prejuízos milionários, mas pode também provocar danos longevos ao meio ambiente e à população, pois há risco de vazamentos, incêndios ou explosões.

Ambientalistas explicam que um dos principais danos, nesses casos, é a infiltração desse material no solo e a contaminação do lençol freático, espécie de rios subterrâneos que são comumente explorados por poços.

Em relação ao vazamento decorrente de furto de combustível em Duque de Caxias, a Transpetro disse que vem atuando em parceria com os órgãos ambientais para mitigar os impactos ao meio ambiente e à população. A análise do impacto ambiental já começou, mas ainda não foi concluída.

Notícias Relacionadas

Deixe uma resposta

Últimas