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Policial aprende a ser autoritário na favela e submisso fora, diz ex-comandante da PM do Rio

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“Sabe aqueles filmes americanos de faroeste onde as pessoas dizem que lá tudo pode acontecer?”, pergunta o coronel da reserva Ubiratan Ângelo, ex-comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro e hoje coordenador de segurança pública da ONG Viva Rio. “No Rio de Janeiro está acontecendo a mesma coisa”, ele mesmo responde à pergunta feita à BBC News Brasil.

O coronel que comandou a PM fluminense em 2007 e 2008 comentava a morte de Ágatha Félix, menina de oito anos atingida por tiros nas costas enquanto estava dentro de uma kombi, no Complexo do Alemão, conjunto de favelas na zona norte do Rio.

Moradores e parentes de Ágatha dizem que o tiro foi disparado pela polícia. A versão da polícia diz que os policiais reagiram a um ataque de criminosos, sem explicar de onde partiu o disparo que matou a garota na madrugada de sábado (21).

O ex-comandante da PM se recusou a avaliar a ação antes de uma perícia revelar a dinâmica dos fatos, mas comentou a atual situação de violência no Rio.

“A morte dela foi o mais recente episódio. Ontem foi um policial. Isso acontece onde tem confronto. Porque nesse espaço tem abandono do poder público”, diz Ângelo.

Para ele, o Rio virou um lugar onde “é permitido que o cara use fuzil, que seja abatido com fuzil, que o cara se torne bandido”, por falta de políticas de desenvolvimento ecônomico e humano em zonas periféricas.

O governador do RJ, Wilson Witzel (PSC), adota um discurso de defesa de uma atuação ostensiva da polícia. No primeiro semestre deste ano, houve uma queda de 23% nos homicídios no Estado, mas um aumento de 15% nas mortes em ações policiais no Rio em relação ao mesmo período de 2018.

Sobre a política de segurança atual, Ângelo afirma que o governo não tem “uma política de segurança, tem política de confronto, e no dia seguinte do confronto, qual é a proposta do Estado?”

Para ele, a sociedade chancela a postura do governador. “O inaceitável é que tenha tiroteio todo dia e a sociedade não esteja nem aí.”

BBC News Brasil – Qual foi a sua reação quando soube da morte da Ágatha, e como o senhor avalia uma situação em que uma criança morre num contexto de ação policial?

Ubiratan Ângelo – Sou carioca, sou da favela, fui da polícia. Saí da favela e da polícia, mas elas não saíram de mim. Sinto muito o que acontece nas comunidades. Me dói muito. Independentemente de ser criança ou adulto. Quando é criança a comoção é mais imediata.

Quem atirou possivelmente não quis acertar a criança ou a van. O disparo foi parar ali. Isso não acontece em qualquer lugar do Rio de Janeiro. Só acontece nesses espaços (favelas) e vai acontecer de novo.

O perfil de morte violenta no Brasil é homem, jovem, pobre, morador de favela e negro. Morrem onde vivem e trabalham. Nas periferias. Esses espaços são violentos porque há disputa territorial, e não porque tem tráfico de drogas.

A morte dela foi o mais recente episódio. Ontem foi um policial. Isso acontece onde tem confronto. Porque nesse espaço tem abandono do poder público.

BBC News Brasil – O sr. acha natural que uma criança morra numa situação em que a polícia esteja envolvida?

Ângelo – Não acho aceitável que ninguém morra — quem mora, trabalha ou transita por ali. Mas a sociedade banalizou e aceita. Nesses espaços, a sociedade autoriza que haja violência, que o Estado não atue. A polícia vai ter que entrar, então vai ter troca de tiro. A morte da menina é a gota d’água. Mas o inaceitável é que tenha tiroteio todo dia e a sociedade não esteja nem aí. Quem está na zona sul (parte mais rica do Rio) não tem o perfil de quem vai morrer ou sofrer tiros. O que é decisivo é a pessoa estar na favela. A idade vai variar, mas vai ser sempre lá.

BBC News Brasil – O que esses episódios dizem sobre a forma como a polícia atua nesses territórios?

Ângelo – Para mim, não faz diferença a pessoa ter a ver (com o tiroteio). A sociedade diz que essa criança não podia morrer porque não tinha nada a ver. Mas isso significa o quê, que o bandido pode morrer, que o policial pode morrer? Ninguém pode. Quem vai se comover, mesmo, é a família dela. As pessoas ficam com pena, mas não se comovem. Quem está em outro espaço não está nem aí. Seu ponto no Google Maps não está georreferenciado como local de confronto.

BBC News Brasil – Há manifestações públicas marcadas e protestos mobilizados a partir dessa morte.

Ângelo – São manifestações de cunho político, contra o governador. Vão aproveitar esse gancho. Deveriam estar preocupados com todas e mais essa. Sinto muito pela menina, podia ser minha parente, tenho familiares na favela. Mas temos que estar incomodados com todas as mortes. São cenários de guerrilha urbana. O que estão fazendo para que o Estado entre, desenvolva um programa de desenvolvimento econômico e humano?

Qual é a política adotada pelos poderes municipal, estadual, federal? Na favela, tem um pedacinho de cada um. Sabe aqueles filmes americanos de faroeste onde as pessoas dizem ‘lá tudo pode acontecer’? Aqui está acontecendo a mesma coisa. É permitido que o cara use fuzil, que seja abatido com fuzil, que a polícia mate bandido. Se a polícia matar bandido, tudo bem, mas é permitido que o cara se torne bandido.

BBC News Brasil – A versão da polícia é de que foi provocada, mas moradores dizem que não foi o caso. Como avalia essa postura da PM de adotar o mesmo discurso de que estava respondendo a tiros?

Ângelo – Em primeiro lugar, há uma dúvida: houve confronto? Sempre há duas versões, a da polícia dizendo que sofreu ataque e a da comunidade dizendo que a polícia entrou atirando. Se isso acontecesse na zona sul, já saberíamos, porque tem sistema de câmera de segurança, as pessoas dariam testemunho. Ali, não, prevalece a lei do silêncio. Vou falar o discurso que sou autorizado a falar ou vou agir com emoção.

As pessoas dizem que o policial atua diferente em lugares diferentes. Mas tudo é diferente (numa favela). O cara que entrou para a polícia aprendeu a ser autoritário nesse espaço e submisso em outro. Ele pega o trem e altera o comportamento. Todos nós, policiais ou não. Na zona sul, não atira porque não atiram nele.

BBC News Brasil – O sr. está dizendo que não acontece de a polícia iniciar uma situação de confronto?

Ângelo – Não disse isso, é preciso apurar. Acontece, sim, de entrar atirando, mas não é a maioria.

BBC News Brasil – O sr. tem alguma crítica à maneira como a polícia atuou nesse caso?

Ângelo – Faço crítica quando atuou errado. Aí faço a crítica. A sociedade autoriza que nesse espaço o Estado só atue dando tiro. O saldo disso é nada de positivo. Não quero avaliar só a polícia, mas o sistema.

BBC News Brasil – Como avalia política de segurança do governo atual?

Ângelo – E qual é a política de segurança dele? Como vou avaliar? Política é algo maior do que ordem. Se eu entender qual é a política dele, posso avaliar. No seu discurso ele traz algumas coisas. Por exemplo, apoio o policial. Se der um tiro num bandido de fuzil, eu apoio. E se matar alguém que não estava com um fuzil?

A questão não é ter ou não ter confronto, é que o governo só tem colocado em pauta o confronto como alternativa. E no dia seguinte do confronto, qual é a proposta do Estado? Vou ficar confrontando todo dia? O tráfico não está diminuindo. Não houve qualquer redução. O confronto não vai reduzir o tráfico de drogas.

Exército não é estratégia. Qual é a estratégia para que o jovem não morra, não entre no tráfico? O que é feito? Enquanto estamos olhando só para o fuzil, esquecemos da mão que segura o fuzil. Qual é a proposta para a garotada envolvida ou não envolvida? A polícia tem que ser o agente garantidor, mas o Estado tem que assumir o espaço, com desenvolvimento humano e econômico. O ponto fundamental é o ser humano. E ele não tem proposta para isso. Então não tem política de segurança, tem política de confronto.

BBC News Brasil – O quanto a retórica do governador estimula a letalidade policial?

Ângelo – Witzel fala de uma forma que autoriza esse sistema. Mas os outros autorizaram também. O discurso interfere na ponta. Ele mexe com a psique da sociedade. Hoje você tem a polícia pensando “o governador está apoiando a gente” — chefes de batalhões, delegados, policiais. O governador aparece. Esse discurso aguerrido mexe com o policial que está na ponta. As pessoas votaram nele, votaram no discurso dele. Ele foi eleito para fazer isso. E o policial é reflexo da sociedade. Então tem efeito. Daí a dizer que esse efeito é responsável por aumento da letalidade, não sei, precisa de estudo.

BBC News Brasil – A polícia do Rio sempre teve taxas altas de letalidade. Ela caiu um pouco por alguns anos, durante o início de período de UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), mas agora vem batendo recordes. O que está acontecendo?

Ângelo – A questão não é o que está acontecendo, mas o que aconteceu quando caiu. Nessa época teve redução de homicídio e vitimização de policial, bala perdida. Porque teve ocupação de território. A ocupação impede o confronto, torna ele desnecessário e inviável — porque se tem policial, não vai ter invasão de outro grupo, não vai ter operação porque a polícia já está ali. E a polícia retira as armas, não tem letalidade porque não tem com quem ter, porque não há confronto. A questão toda é disputa territorial.

A UPP não foi pacificadora. O desenvolvimento humano e econômico não foram eficazes. Como resposta imediata à violência letal, foi ótimo. Mas que mecanismos foram afetados? O tráfico de drogas segue. Alterou só a forma. Os garotos ficaram desempregados no tráfico, foram roubar na rua, sem revólver, em grupo, com arma branca. A gente olha segurança pelo lado do crime, mas tem que olhar pelo lado do ser humano. Não mexeu na questão econômica de quem vivia em função do tráfico.

 

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