A ministra Cármen Lúcia encerra hoje (13) seu mandato como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) após dois anos em que controlou de perto a pauta de julgamentos e teve que lidar, em mais de uma oportunidade, com embates entre o Judiciário e os outros poderes. Ela será substituída pelo ministro Dias Toffoli.
Cármen Lúcia deixa também o posto de presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A ministra foi a segunda mulher a ocupar ambos os cargos – a primeira havia sido a ministra Ellen Gracie, já aposentada. Nessa condição, Cármen Lúcia promoveu políticas que visaram atender lacunas na prestação de atendimento às mulheres no Judiciário.
Uma semana antes de deixar o comando do CNJ, por exemplo, apresentou e obteve aprovação de três novas resoluções que dizem respeito às mulheres, instituindo políticas de combate à violência doméstica e de incentivo à participação feminina em cargos de comando no Judiciário e regulamentando a atenção a gestantes e lactantes em unidades prisionais.
Em mais de uma oportunidade, Cármen Lúcia afirmou, fosse em plenário ou em eventos sobre o tema, que o fato de presidir o STF foi um fato “excepcional”, não refletindo uma mudança real na situação desprivilegiada da mulher brasileira. “Há enorme preconceito contra a mulher no Brasil”, afirmou na primeira sessão plenária que presidiu, em 14 de setembro de 2016, um dia depois de tomar posse.
Em maio de 2017, também em plenário, Cármen Lúcia reclamou da interrupção exacerbada dos ministros em relação a ela e a Rosa Weber, as duas únicas mulheres da Corte. “Em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar”, disse durante um julgamento. Em uma entrevista recente, ela afirmou não ceder “diante de pressões pelo fato de ser mulher”.
Crise carcerária
Três meses após assumir, Cármen Lúcia precisou lidar com uma crise aguda na já crônica situação precária das prisões brasileiras. Em janeiro de 2017, ao menos 133 detentos foram mortos em rebeliões, alguns decapitados.
Responsável por supervisionar o sistema prisional, o Judiciário foi alvo de cobranças. Numa tentativa de desafogar o sistema, Cármen Lúcia convocou todos os tribunais do país a fazer um esforço concentrado para julgar os processos dos presos provisórios, sem condenação e que representam mais de 40% do total de detentos.
Cármen Lúcia também adotou, nessa área, uma postura em que se manteve como protagonista: ela fez visitas a 20 unidades prisionais, em 17 estados, ao longo de seu mandato.
Em outra frente, a ministra implantou o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões 2.0, com o intuito de suprir a carência de dados fidedignos e atualizados sobre a realidade carcerária no Brasil. Ao deixar o CNJ, a ministra entrega a ferramenta com as estatísticas em tempo real de 25 das 27 unidades da Federação.
Centralização
Ao longo de dois anos, nos bastidores dos gabinetes do Supremo, o comentário mais recorrente diz respeito ao caráter centralizador da ministra. Na gestão Cármen Lúcia, a definição da pauta de julgamentos passou a ter menos influência da vontade coletiva dos ministros, ficando mais a critério da presidência da Corte.
Em momentos mais agudos, ministros chegaram a criticá-la publicamente. Foi o caso, por exemplo, do episódio envolvendo os mais antigos, como Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, que expressaram em entrevistas e no plenário contrariedade por ela não pautar alguns processos, entre eles as ações declaratórias de constitucionalidade (ADC´s) sobre execução de pena após condenação em segunda instância.
Em um sinal dessa menor sinergia entre os gabinetes, Cármen Lúcia viu subir a temperatura dos desentendimentos entre seus pares durante sua gestão. O ápice ocorreu durante um embate de ofensas diretas protagonizado, em plenário, por Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que chegou a chamar o colega de “mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”.
Ao assumir, Toffoli levantará a bandeira da pacificação como um dos objetivos de sua gestão.
Embates
Cármen Lúcia se deparou com embates tanto no ambiente interno quanto fora da Corte. Pouco depois de ela assumir, uma decisão do ministro Marco Aurélio Mello colocou Judiciário e Legislativo em rota de colisão.
Em dezembro de 2016, Marco Aurélio Mello determinou, liminarmente, o afastamento do então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), do comando da Casa. Ele tomou como base uma maioria de seis ministros, formada em julgamento no plenário no mês anterior, para vedar que réus ocupassem cargos na linha sucessória da Presidência da República.
Ao final, Calheiros decidiu não cumprir a liminar, causando constrangimento entre os poderes. A solução costurada internamente foi o decano do STF, ministro Celso de Mello, voltar atrás em seu voto, desfazendo a maioria anterior e dando respaldo para a permanência do senador no cargo. A imagem do Supremo saiu chamuscada do episódio.
Em setembro do ano seguinte, o Senado voltaria a desafiar uma decisão do STF, dessa vez proferida pela Primeira Turma, que ordenou o afastamento de Aécio Neves(PSDB-MG) do cargo de senador.
Mais uma vez, Cármen Lúcia operou para contornar a situação e pautou em plenário uma ação na qual os ministros decidiram que qualquer medida cautelar contra parlamentar precisaria de aval do Congresso, o que manteve Aécio no cargo. O episódio foi lido como uma derrota do Judiciário ante as reações de parlamentares contra a Lava Jato.
Ao longo de seu mandato, a ministra teve também de administrar embates com o Executivo, como a suspensão de um indulto natalino editado pelo presidente Michel Temer concedida por Luís Roberto Barroso via liminar. Outra ocasião que levou a acusações de interferência indevida do Judiciário ocorreu quando o Supremo barrou a posse da deputada Cristiane Brasil (PDT-RJ) como ministra do Trabalho.
Foro privilegiado
Mesmo com o desconforto institucional, Cármen Lúcia levou adiante um pleito antigo de diversos ministros que passaram pelo STF nas últimas décadas: uma restrição maior do foro por prerrogativa de função, também conhecido como foro privilegiado.
Ela pautou um recurso relatado por Luís Roberto Barroso, no qual o ministro sugeriu que, no caso de congressistas, somente permanecessem no STF casos relacionados a crimes suspeitos de terem sido cometidos no exercício do cargo e em função dele.
Cinco longas sessões plenárias foram necessárias para que o tema fosse julgado. Na última, em maio, prevaleceu a tese de Barroso, por 7 votos a 4. Desde então, ao menos 230 processos envolvendo deputados e senadores foram remetidos a instâncias inferiores.
Muitos viram na restrição do foro uma resposta à reação dos políticos contra a Lava Jato, diante de projetos de lei em tramitação no Congresso que buscavam, ao menos na visão de magistrados e promotores, tolher a atuação do Judiciário. O PLS 85/2017, por exemplo, fora aprovado no Senado na semana anterior à restrição do foro, e pretendia tipificar o abuso de autoridade por parte de juízes e membros do Ministério Público, bem como restringir o uso da prisão preventiva.
A restrição do foro seria um troco do Judiciário, dado o fato de que um inquérito por corrupção leva muito mais tempo para ser julgado no STF do que na primeira instância. Desde então, o projeto sobre abuso encontra-se parado na Câmara.